quinta-feira, 11 de março de 2010

GULA DAS METRÓPOLES AGRAVARÁ ESCASSEZ DE COMIDA

Por PEDRO DIAS LEITE, de Londres -

A fome das grandes cidades por cada vez mais comida, sem nem ter idéia de sua origem e de como é feita, criou um novo modelo mundial que agora está estourando justamente nos cantos mais pobres do planeta, os mais afetados pela alta global dos preços dos alimentos. Isso é o que defende a pesquisadora Carolyn Steel, que passou a última década estudando o assunto.
Autora do recém-lançado "Hungry City - How Food Shapes Our Lives" (Cidade com Fome - Como a Comida Define Nossas Vidas, ed. Chatto & Windus, 400 págs., 12,99, R$ 41, Reino Unido), Steel afirma que a evolução das cidades e da agricultura industrial alteraram a relação entre o homem e a comida.
Com os avanços tecnológicos e nos transportes, os alimentos deixaram de ser produzidos próximos das cidades e agora podem vir de qualquer lugar do mundo. Assim, quem vive em metrópoles como Londres, Nova York ou São Paulo não imagina que o bife que está mastigando teve de vir de uma vaca criada em algum lugar distante.
Essa desconexão, que Steel chama de "era não-geográfica" da alimentação, se expandiu pelo mundo nas últimas décadas. E no momento em que o preço da comida está subindo vertiginosamente em todo o mundo, quem irá passar fome, segundo ela, serão os mais pobres -que também perderam essa relação próxima com a produção da alimentação, mas não têm dinheiro para comprar a refeição que vem de longe.
Para Steel, a solução é conter o desejo do mundo desenvolvido por cada vez mais comida e voltar a regionalizar a produção de alimentos, respeitando as estações do ano e as características dos países -algo que ela considera como o início da "era neogeográfica". A seguir, trechos da entrevista.
FOLHA - A sra. diz que o pedaço de carne que colocamos na boca durante a refeição deixou de ter relação, em nosso imaginário, com o animal. Como se chegou a esse ponto?
CAROLYN STEEL - O modo como Paris e Londres cresceram possibilita uma comparação interessante, pois o modo como essas duas cidades se alimentaram ao longo da história diz muito sobre o mundo de hoje. Londres fica às margens de um rio navegável, e desde o século 18 as plantações já estavam distantes da cidade, pois era muito fácil transportar grãos pelo mar.
Já Paris viveu uma situação oposta, já que o Sena não é navegável. Logo, o mercado de grãos sempre foi altamente regulado, e toda a região ao redor da cidade era controlada, porque era de lá que vinha a comida. Assim, em Londres, foi o livre comércio que garantiu a alimentação. Em Paris, foi o governo. Quando faltou comida, o rei caiu e houve a revolução [em 1789].
O que é interessante é que desapareceu a idéia segundo a qual as cidades deveriam ser auto-suficientes, e o modelo londrino se tornou dominante globalmente. Existe uma consciência de que nós não conseguimos produzir nossos alimentos, mas isso deixou de ser importante, porque podemos contar com o que vem de fora, de todos os cantos do mundo.

FOLHA - E qual é a conseqüência?

STEEL - Nós chegamos a uma era não-geográfica, em que a produção industrial de alimentos tornou possíveis imensas cidades, que podem ser erguidas em qualquer lugar. Antes do século 18, o tamanho e a localização das cidades eram limitados.
O interessante é que estamos entrando numa era em que a geografia voltou a ser importante, voltou a contar, uma era neogeográfica: a preocupação com a água é cada vez mais destacada, e 95% da produção de comida -com fertilizantes, máquinas e transporte- depende do petróleo, que é finito. Globalmente, o processo de mudança climática colocou isso em evidência, associado a um modelo de produção de comida que não é racional no que diz respeito ao uso da terra.
Pegue-se o atual debate sobre produção orgânica versus produção industrial de alimentos. Há pessoas que dizem que a produção industrial é muito ruim, mas, por outro lado, não é possível alimentar o mundo só com produtos orgânicos -e o pior é que, enquanto isso, vamos seguindo o rumo atual, sem mudanças. Temos de encontrar um terceiro caminho, temos de entender que o solo é um recurso finito, assim como a energia.

FOLHA - Mas como, já que o o mundo precisa ser alimentado?

STEEL - Nossa posição em relação à natureza produtiva é a de não a vermos como natureza propriamente dita, mas como uma fábrica. Um campo de soja, de grãos, é tratado como uma fábrica de sementes.
Parte do problema é que não vemos isso como a parte da natureza com a qual nos preocupamos. Precisamos voltar a aproximar essas duas visões de natureza. Os Alpes são lindos, mas a plantação que nos alimenta também. Em vez de viver na terra e com ela, nós vivemos "da" terra. É aquilo que chamo de "paradoxo urbano": apesar de morarmos em cidades, ainda vivemos da terra, tanto quanto nossos ancestrais. Precisamos aproximar essas visões.

FOLHA - Quais são as conseqüências do modelo "não-geográfico"?

STEEL - As pessoas já estão passando fome, e a situação deve piorar -essa é a parte mais trágica. As grandes corporações alimentícias, que se desenvolveram com o beneplácito e o estímulo dos governos ocidentais, estão tomando conta de todo o mercado.
Com a industrialização, existe uma grande concentração de toda a produção e distribuição nas mãos de poucas e poderosas corporações, sobre as quais sabemos muito pouco. Com isso, a agricultura de menor escala está desaparecendo, tanto pela competição como por se tornar refém dessas grandes empresas transnacionais. Para os africanos, a alimentação sempre dependeu da distribuição de comida por parte de entidades assistenciais, e nunca se pensou decididamente em ajudá-los a produzir.
O continente não caminha para a auto-suficiência, mas, sim, na direção oposta. É claro que muitos países africanos sofrem com a falta de água, mas a situação não precisava ser tão ruim quanto é. Regiões inteiras se tornaram dependentes desse modelo, e agora a ONU não consegue alimentar essas pessoas porque o preço da comida subiu.

FOLHA - Mas então que soluções a sra. aponta?

STEEL - A produção precisa se regionalizar de novo. O Reino Unido não poderia produzir todos os seus alimentos, nem se quisesse, mas, em vez de importar do Quênia todos os feijões que consome, o país poderia produzi-los. E também temos de respeitar as estações do ano. Claro, não há problema em importar bananas do Caribe ou do Brasil, pois temos de respeitar as características locais dos países.
Mas não devemos determinar que parte do mundo tem de produzir um tipo de alimento que não tem nada a ver com esses países, só para alimentar alguém na outra metade do planeta que gosta daquilo.
Precisamos de uma cidade que volte a ter um elo com o mundo natural, com áreas produtivas dentro delas.

Enquanto isso parecer uma luta, não estaremos investindo nossos melhores recursos na busca de energia sustentável, assim como também não estaremos investindo nossos melhores recursos na busca de alimentação sustentável.